domingo, 22 de fevereiro de 2015

Trapos (ii)

(...)
O velho da hemorragia baixou a cabeça. Na posição em que se encontrava, o sangue que escorria do nariz entrava directamente entre a camisa e a pele, descia pelo peito e começava a alojar-se na parte posterior das calças, tingindo de vermelho o assento do banco. Voltou a procurar o lenço no bolso, limpou-se e ficou com ele a pressionar o local da ferida. Ao ver que o olhavam fixamente, disse, sem que lhe tivessem perguntado nada:

— Caí!
Ninguém respondeu.



— Podias ter-te sentado — disse o outro homem à esposa. — Ainda vamos ter muito que esperar.

A mulher, alta, esguia, evidenciando traços que permitiam avaliar ter sido na juventude muito bonita, vestia apenas uma bata sem mangas, com minúsculas florinhas estampadas, e calçava umas sandálias baixas de palha entrançada.

Aproximou-se mais do marido e falou-lhe baixo, perto do ouvido:
— Vê se te calas. Esse homem está pior que eu.
— Aqui ninguém está pior — resmungou o marido.
— Cala-te, homem, que Deus pode-te castigar.
— Deus?! Ora!, Deus...

A mulher deitou-lhe um olhar frio e o homem ficou calado durante uns segundos. Depois, voltou a resmungar alguma coisa imperceptível e saiu de ao pé dela para se encostar à parede branca, do outro lado do corredor, exactamente entre o fim do banco ocupadíssimo e a porta fechada de um dos gabinetes.
De vez em quando uma das portas abria-se, dando passagem a pessoal médico que transitava apressado no corredor, deixando atrás de si o chiar abafado das solas dos sapatos no piso sintético, para entrar noutras portas que se fechavam de seguida.
Uma enfermeira de meia-idade saiu do elevador e, saltitando, dirigiu-se à porta junto da qual o homem se encontrava.

— É uma vergonha — disse-lhe o homem, como se se dirigisse a um holograma.
— O quê?! — perguntou a enfermeira, apanhada de surpresa.
— Que estejamos todos aqui a morrer, e ninguém nos atenda!

A enfermeira não lhe respondeu; já estava habituada às reclamações. Abriu a porta com a sua mãozinha branca e pequena, entrou, vestida de anjo imaculado, e voltou a fechá-la. Quando o estalido da língua a correr na fechadura deixou de se escutar no silêncio quase absoluto do corredor, a mulher foi colocar-se ao pé dele e voltou a repreendê-lo em voz baixa:

— Não tinhas o direito. A senhora está a entrar ao serviço e nem sequer sabe o que se passa...
— Ora — disse o homem, gesticulando. — Estamos para aqui a morrer e ninguém nos atende...
— Como!? — exclamou a mulher, embora tivesse escutado perfeitamente as palavras do marido.
— Disse que estamos todos para aqui a morrer e que ninguém nos dá atenção...

A princípio, a mulher ficou calada. Depois, num ímpeto, respondeu-lhe com rispidez:
— Para o caso de tu ainda o não saberes, a doente, aqui, sou eu. E não me ouves lastimar.
— Não se falando, está-se aqui todo o dia. Morre-se para aí a um canto, como um desgraçado dum cão.
— Se alguém aqui está a morrer, não és tu— disse-lhe a mulher já visivelmente alterada com a impaciência do marido.

O homem respondeu-lhe nos mesmos modos:
— Aos oitenta anos, não são só os doentes que morrem. Cada minuto que aqui passo, à espera que te atendam, é um pedaço de vida que me tiram. Achas que isso não é morrer?!...
A mulher escolheu calar-se.

"Trapos" - Conto de José Abílio Coelho

Continua...

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Imagem: daqui


5 comentários:

  1. "Cada minuto que aqui passo, à espera que te atendam, é um pedaço de vida que me tiram. Achas que isso não é morrer?!..."

    Adorei! Não morre só quem está doente mas também quem espera e, muitas vezes, em vão.

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  2. ~ ~ Um drama diário... ~ ~

    ~ ~ Continuo a gostar. ~ ~

    ~ ~ ~ Abraço amigo. ~ ~ ~
    .

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  3. O caleidoscópio que é a face da Morte. Vejamos o resto...
    abraço!

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  4. Ainda não me tinha ocorrido, mas é isso: cada minuto naqueles corredores é 60 segundos menos de vida e de felicidade.

    Até amanhã.

    Beijinhos

    Isabel Gomes

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  5. (^‿^)✿

    Coucou Olinda et MERCI pour ce beau partage.

    GROS BISOUS D'ASIE✿ et bonne continuation !!!

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