segunda-feira, 28 de abril de 2014

Do quadro revolucionário ao protocolo institucional

No dizer de Pierre Goubert, as revoluções perturbam as próprias bases do governo e da legislação, reclassificam os grupos sociais, revelam homens novos e frequentemente jovens, deslocam pelo menos em parte a propriedade e renovam sensivelmente as ideias, as mentalidades e as paixões.

Isto dito num contexto de análise de uma outra revolução, num outro tempo e espaço geográfico, mas que vem ao encontro das especificidades do ambiente vivido na sequência da Revolução de Abril de 1974, durante o chamado Prec, processo revolucionário em curso, período conturbado com acções como a reforma agrária, nacionalizações, saneamentos, movimentos populares que culminaria no golpe militar de 25 de Novembro de 1975. Nem sempre imperara o bom senso e sabemos que muitos acabariam por abandonar o país por terem ficado sem os seus bens e sofrido lamentáveis reveses.



A calma foi voltando, entretanto. Em 1976 foi aprovada a nossa Lei Fundamental, a Constituição que veio substituir a de 1933, com uma nova visão sobre a sociedade. O Estado de direito afirmou-se, funcionando em pleno através das suas instituições. 

Assim sendo, esbatido o inicial fulgor revolucionário e, tendo como referência as comemorações oficiais relativas à Revolução de Abril de 1974, estas já não acontecem nas ruas nem nas praças, nem em tribunas improvisadas, com vozes inflamadas e discursos apaixonados. É lá dentro, no hemi-ciclo parlamentar que tudo acontece, obedecendo a protocolos, através das vozes dos representantes que elegemos, na presença de auditório convidado para o efeito. Tudo muito direitinho e organizadinhho.



Mas cá fora também tivemos a nossa comemoração assinalando a data que tantas mudanças operou, quiçá mais espontânea embora não tão festiva como gostaríamos que fosse. Muito tempo se passou já e, como sabemos, o tempo não perdoa. Emocionou-me ver aquelas cabeças grisalhas, militares e populares anónimos, agora na casa dos sessenta e setenta ou um pouco mais. Imaginei-os há quatro décadas, jovens de 20 e tal anos, uns tomando decisões cruciais e outros pulando, gritando e cantando, dando vivas a uma revolução, aliás, a uma situação cujo alcance não percebiam ainda muito bem.



Neste momento, a geração sobreviva, perante a crise financeira e de valores que atravessamos, ainda procura a antiga chama de modo a alimentar rasgos de patriotismo. Ouvi um comentador dizer, num dos canais de tv, nas vésperas do dia 25: Nós, os que temos agora 40 anos, somos os filhos daquela madrugada... E gostei. Que esta geração e as vindouras, filhos dos filhos dos filhos daquela madrugada, possam receber em suas mãos, amorosamente, o testemunho em direcção à longa caminhada que está por fazer.

*****

Voltarei, na terça ou quarta, com o meu último post relacionado com a etiqueta Leituras de Abril. Desta feita trarei Almeida Santos, em Quase Memórias.

Tenham um bom fim de semana.

Abraço

Olinda


Nota: Por motivos técnicos não pude publicar este post no sábado. Então, os meus votos vão agora para um belíssimo início de semana. :)

*****

Ouvir: Filhos da madrugada, de Zeca Afonso

Referência a Pierre Goubert, in: História Concisa de França, Vol.II, pg.7
Imagens retiradas da internet 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Abril a rodos, Abril de sol que nasce para todos

Um Abril que nos enche de alegria e tão completo como nos mostra aqui este poema. Uma autêntica bebedeira de Abril com tudo o que nos trouxe em termos de liberdade, liberdade de expressão, liberdade de pensamento, liberdade de acção.

Um Abril de massas, de novos ritmos e rumos, um caminho cujo início nos foi indicado há quarenta anos, dependendo de nós os trilhos por que optamos.

Um Abril de trigo, trevo, cravo, Abril de sonho, Abril palavra, Abril que se transforma em símbolo e mais tarde quando falarem de nós, dos Capitães de Abril e de todos os que não voltaram, um Abril mito.

Porque é nas lendas, mitos e heróis que encontramos a nossa força comum.

    



ABRIL DE ABRIL

Era um Abril de amigo Abril de trigo
Abril de trevo e trégua e vinho e húmus
Abril de novos ritmos novos rumos.

Era um Abril comigo Abril contigo
ainda só ardor e sem ardil
Abril sem adjectivo Abril de Abril.

Era um Abril na praça Abril de massas
era um Abril na rua Abril a rodos
Abril de sol que nasce para todos.

Abril de vinho e sonho em nossas taças
era um Abril de clava Abril em acto
em mil novecentos e setenta e quatro.

Era um Abril viril Abril tão bravo
Abril de boca a abrir-se Abril palavra
esse Abril em que Abril se libertava.

Era um Abril de clava Abril de cravo
Abril de mão na mão e sem fantasmas
esse Abril em que Abril floriu nas armas.

MANUEL ALEGRE


*******

Bebedeira de Abril: Paráfrase do verso "em bebedeira de azul" do poema Pedra Filosofal de António Gedeão. 
Perdoem-me a liberdade.:)

Imagem de: aqui

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Toada do Vento Africano

Vento que vens do fundo da floresta
e não trazes a noite vestida de festa
vento que vens do lado da guerra 
sem trovas
                  sem trovas
carregado dos ecos da metralha
vento que vens como quem berra
vento que nasces nas covas
onde jazem os restos da última batalha
ó vento cheio do lamento
dos que morrem nos campos de batalha.
Vento que vens do lado da guerra
sem flores
                  sem flores
nem sementes nem chuva sobre a terra
vento que vens como um rufar de mil tambores
sem cheiro de mimosas ou pinheiros
sem o marítimo
ritmo
das cantigas dos velhos marinheiros
sem nada 
                  sem nada
sequer a pátria imaginada
feliz e livre
(que nunca tive
                   que nunca tive).

Cala-te vento.
Se continua Alcácer Quibir
eu já te disse que não quero ouvir
nem ecos de metralha
nem o lamento
dos que morrem nos campos de batalha.
Cala-te vento. Cala-te. Não digas nada.
Ou traze então um cheiro a vinho novo
um puro cheiro a cravos e mulheres
e a flor do verde pinho
e as cantigas que ficam no caminho
sempre que passa um velho marinheiro.
Traze-me tudo o que quiseres.
Mas por favor ó vento amigo vento viageiro
não tragas mais os mortos do meu povo.

MANUEL ALEGRE



       
Este poema pertence ao capítulo V-Nambuangongo Meu Amor da obra poética completa, de Manuel Alegre, com reedição aumentada em 1997 e intitulada "30 Anos de Poesia", prefácio de Eduardo Lourenço.

No passado dia 9 foi lançada a Antologia "País de Abril", com 29 de poemas do autor, alguns deles escritos antes da Revolução de 1974. É o caso do poema País de Abril escrito em 1964 e que já consta, na página 59, da obra que referi acima, isto é, de "30 Anos de Poesia".

O poema País de Abril tem um cariz premonitório em relação ao que viria a acontecer, no mês de Abril, dez anos depois. E poderia ser o tema deste post. Mas, preferi Toada do Vento Africano. Nele poderemos entrever o doloroso processo que antecede o 25 de Abril de 1974, cujas ramificações ultrapassam a revolução e o tempo presente: a guerra do ultramar e a geração esquecida que nela tomou parte. Uma quase introdução ao tema que apresentarei proximamente.


****

Notícia sobre a antologia "País de Abril": aqui

quarta-feira, 16 de abril de 2014

A poesia é uma forma de resistência? Sempre, por definição? Ou apenas em determinados contextos - sociais, políticos, culturais? Como pode a poesia resistir e a quê?

Estas perguntas foram colocadas num inquérito a poetas do Brasil, Espanha e Portugal. Do nosso lado são 23 os inquiridos, com muitos nomes sonoros, já conhecidos nossos: 

A.M.Pires Cabral; Adília Lopes; Alberto Pimenta; Armando Silva Carvalho; Daniel Jonas; Diogo Vaz Pinto; Fernando Guimarães; Fernando Pinto do Amaral; Gastão Cruz; Herberto Helder; Inês Lourenço; José Luís Barreto Guimarães; José Emílio-Nelson; José Miguel Silva; José Tolentino Mendonça; Luís Quintais; Manuel António Pina; Manuel de Freitas; Manuel Gusmão; Margarida Vale de Gato; Nuno Júdice; Rui Lage; Vasco Graça Moura.

De entre as respostas escolho a de Armando da Silva Carvalho por um motivo: ele vai buscar Bernardo Soares para documentar o seu discurso, o qual, por sua vez, inspirou um trabalho intitulado, "O Riso Agudo dos Cínicos": Desassossego e Ironia, em Armando Silva Carvalho, da autoria de Joana Matos Frias, Universidade do Porto, em que a autora, a partir de uma reflexão sobre a resposta do poeta à questão “A poesia é uma forma de resistência?” e sobre o seu dictum “O texto não faz nem refaz o mundo”, procura reconstituir na sua obra poética, desde o inaugural Lírica Consumível (1965), os princípios elementares que presidem ao exercício da “expressão desassossegada”, da retórica da ironia e da textualidade paródica que têm singularizado o discurso do poeta no panorama da literatura portuguesa contemporânea.

Da resposta ao inquérito, de Armando da Silva Carvalho, deixo aqui este excerto: 


A RESISTÊNCIA COM BERNARDO SOARES

(...)

A vossa pergunta optou por relativizar a resistência: ela será mais uma atitude a concorrer no trabalho poético. Ou seja, os contextos e a sua diversidade podem levar o autor ( por razões de ética, civismo, ou simplesmente cultura) a subordinar-se a um valor suposta e temporariamente mais alto: a resistência.

E no entanto, o menos que me posso pedir enquanto faço versos, me atolo no magma verbal ou nos dias que escorrem por mim e à minha frente, é que não me faltem aquelas das palavras que sempre me acompanharam na expressão desassossegada da escrita e provocada pela experiência do ser e do existir, pela visão absurda do meu mundo, dos outros, de todos; pela partilha do mal pela ausência do bem, do justo pelo injusto (sem nunca chegar a saber, no fundo, dos dois, afinal o quem é quem no texto), pela impotência frente ao terror, à carnificina, à estupidez imposta a nível mundial e tantos outros lugares cativos e sabidos neste palco global, nesta corrida cada vez mais acelerada a caminho da catástrofe.
    
 E tudo, enquanto vou ficando cada vez mais a sós comigo, guiado pela intuição, essa bússola nos descampados da alma, no dizer de Bernardo Soares, um dos auto-demitidos da vida e que cultivava o ódio à acção como uma flor de estufa.

E é disto, da consciência disto, que surge a resistência, que não tem tempos mortos, nem ocasiões propícias. E talvez com ela surja, como hipótese, a sempre desejada beleza do texto, no seu suposto, frágil, absoluto.

Mas como pode resistir o pobre do poema?

Pela simples razão da sua existência. Não tem outros alicerces. Existência igual a resistência. Se isso, além de se traduzir numa convulsão, inovação, seja o que for, em termos textuais, ganhar também peso na balança da realidade social, da política, do mundo, será já outra história acumulada. Um conjunto de palavras não é nenhuma bomba, o mais que pode ser é um panfleto, um manifesto, uma denúncia, e isto em casos extremos de inflamação contestatária. O pobre do poema, o meu, sempre desconfiou dos travestimentos da fuga em direcção ao nada. Se acaso o deixarem ainda circular, e mais dia menos dia possivelmente não deixam, ele na sua mesquinha, ridícula expressão de singularidade ameaçada, afirmará que resiste contra a sua própria negação. Que no fundo não é mais que a negação da liberdade e da vida.

Porque a história da poesia foi sempre o resistir. Em primeiro lugar, ao próprio acto conformado de resistir textualmente. Depois, ao de resistir ao pai, à mãe, à pátria, ao ferro de engomar padronizado das formas, conteúdos e teorias. O de resistir ao poder da palavra que rebaixa e aprisiona. O de resistir ao definitivo reino do consumismo global, não já ao das coisas, mas também o das almas, do espírito, da singularidade do ser. O de resistir às mais sofisticadas redes de repescar o que vai da mente até aos corpos: o tutano dessa viva e desalterada criatura que é o homem, em processo inexorável de desnaturação. 

E para terminar, peço aos jovens, que passais os dias de hoje a poetar, que olheis essa aventura ou gesta do grande capital contemporâneo. Nunca o sinistro económico se alçou tão despudoramente soberano sobre as nossas cabeças: novas, velhas, pobres, remediadas, mais ou menos inocentes. Aí, nessa aventura, por certo original na forma de destruir economias, países e pessoas, podeis descobrir a epopeia que falta aos tempos do presente mundial. De que estais (estamos) à espera?   

Peniche, Janeiro de 2012


****

Igualmente interessantes são as respostas dos outros poetas. Assim, convido-vos, meus amigos, a acederem ao link associado à palavra inquérito no início do presente post. Creio que gostarão de entrar nesse universo mental, privilegiado, que é o da criação poética e a sua incidência no mundo real, no que a estes poetas diz respeito.

Para provocar a vossa curiosidade insiro aqui estas palavras de Manuel António Pina, entretanto falecido:

(...)


"Como pode resistir a poesia?", pergunta-se: dizendo, por exemplo, coisas como "a Terra é azul como uma laranja", "os pássaros são os primeiros pensamentos da manhã", "a filha da manhã, Aurora de róseos dedos", "tapeçaria de homens" (uma batalha), etc.. "E a quê?": ao jornalismo, à televisão, à publicidade, ao linguajar da prosa de entretenimento e a todos os tipos de linguajares e idiolectos que parasitam e empobrecem a língua: o politiquês, o economês, o eduquês, a língua de pau do Direito e das ciências sociais, a língua de manteiga dos negócios e da diplomacia, concebida para enganar, e por aí adiante.


Assim sucedendo, a poesia já é forma de resistência "política" e "social".

****



sexta-feira, 11 de abril de 2014

O Cultivador de Metáforas - Caçador de Relâmpagos num Chão de Claridades

Do alto da sua escarpa o homem contempla o seu reino. Um mar arável, muitas vezes desgrenhado, um chão de claridades onde se despertam luas-cheias, relâmpagos às mãos-cheias, pedras com vida por dentro, pássaros em santuários, e, no meio de tudo, na terra de todas as metáforas, uma romãzeira perene, repleta de romãs que contam uma viagem para além da Taprobana, combatendo Alísios e Adamastores. Cioso, o homem e o seu cão de barro, o Dique, quase gente, guardam as romãs. Numeradas de um a dez, eu olho para elas invejosa, dizendo: Um dia destes levo daqui uma romã. Ele, nada diz. E quem cala consente, não é? A dificuldade: escolher uma delas. Qual trazer se todas são sumarentas, transbordantes de vida, com bagas vermelhas e reluzentes? O Dique vem em meu socorro, leva-me pela mão e indica-me uma. De olhos fechados, embrulho-a no meu xaile de seda e trago-a comigo. 

EI-LA:





Romã nº 4

A remoinhar desertos e tempestades, acordámos à vista da Taprobana que só existe por tão desejada.
Na mítica Taprobana, lá para os lados de um chão de azuis e outros céus estava tudo no seu lugar.
A fragrância inebriante das algas nas narinas do vento, o bolor à superfície, os
retratos nas paredes da casa – fios de música pendurados nas árvores de fruto para adocicar os melros, a partilha do pó pelos melhores objectos, a biblioteca perfilada nas memórias, ténues sinais, utopias que alimentam o pomar onde plantamos os sonhos em voz alta.
Na mítica Taprobana não vi cegos de concertina nas esquinas, amanhãs violados por uma côdea, nem procissões.
Estava tudo no seu lugar. Até as palavras nómadas, reconstruídas a céu aberto, bosques vertebrados, espaços encantatórios, multidões em andamento para concertos de violino e piano, santuários de pássaros, relâmpagos às mãos-cheias a dardejar no cais.
A nossa romã.
Na verdade a Taprobana talvez exista se continuarmos a desbravar caminhos
improváveis.
Atento militante da vida – o Dique, pela primeira vez, ladrou.
Pousei a caneta, rasguei a folha de papel.
Olhei-o nos olhos e disse-lhe com ternura – a partir de hoje és um cão.



Se quiser provar o sabor das outras Romãs ou a melhor forma de construir sonhos e respirar por guelras vá ao Mar Arável. Quanto à bibliografia do autor clique no nome. Penso que está incompleta porquanto a obra mais recente publicada, salvo erro, chama-se 'Chão de Claridades'. 


Nota: A imagem é da Romã nº 3.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Nossa tristeza é a seguinte: ganhámos sem nunca chegarmos a ser vencedores - Voz de Marcelino, vinda do seu último chão


Li Vinte e Zinco, de Mia Couto, há mais ou menos três anos e agora volto a pegar nele. Ouvi (ou li?) há tempos alguém dizer que com tantos livros que existem reler é uma perda de tempo. Devo dizer que há certos livros que tenho prazer em reler, mesmo em detrimento de outros ainda não lidos e que talvez nunca chegarei a ler. 

Este livro surge na sequência de uma iniciativa da Editorial Caminho, no sentido de assinalar o 25º Aniversário da Revolução de Abril de 1974, da qual resultou a 'Colecção Caminho de Abril', com obras de onze autores. Como não podia deixar de ser, Mia Couto transferiu-se com o tema para o seu espaço de eleição, África, Moçambique, construindo uma história, em forma de diário, que decorre de 19 a 30 Abril.

A seguir, dou-vos conta de algumas passagens.




O dia 30 de Abril tem no seu início a fala que serve de título a este post.

E este dia (o último) tem o seguinte desenvolvimento:

Manhã cedo. O cego Andaré segue pelo carreirinho entre os coqueiros, em direcção à cadeia da PIDE. Leva na mão a chave da prisão. A alegria lhe abalroa o peito. Seus irmãos se libertariam de vez daquela grade. Seria aquilo coisa de acreditar?

Ele se vai guiando pelas sombras, ondulações de cinzento em fundo de cinza. O dia está claro, a luz tão límpida que seus olhos parecem enxergar mais longe. Passa pela margem dos pântanos e pressente as garças como lenços brancos, em drapejos de adeus. Pára, sacudido por miragem. Lhe parece, entre os caniçais, a figura de Irene. Vem acompanhada de Jessumina. As duas estão caminhando na lagoa, a água roça-lhes os joelhos. O cego grita:

-Irene! Menina!

As mulheres erguem o rosto, surpresas. Pareciam não esperar ninguém, manhã tão prematura. Irene ainda acena. O cego corresponde. E um aperto lhe retrai o gesto. Aquele aceno era o da despedida? Andaré esgueira o olhar para aperfeiçoar o horizonte. As mulheres caminham para o centro do lago. Quando a água lhes dá pelo peito, Jessumina pára e passa as duas mãos pela cabeça da branca. Depois, a adivinha lhe vira costas. Irene segue avançando, em demorado naufrágio, até submergir por completo na lagoa. O cego reza para que tudo aquilo não seja mais que desvisão. Dessas imprecisões que nascem de seus olhos adoecidos. Passa as mãos pelas pálpebras como se buscasse um mata-borrão para aquelas desfocadas imagens.

De repente, lhe chega aos ouvidos a algazarra de gente correndo. O clamor e a vozearia chegam no mesmo caminho, mas em oposta direcção. E começam a passar por ele homens correndo, cantando e gritando. São os presos que escapam da cadeira. Quem os soltara?

André apressa-se o quanto pode. Junto à prisão se aglomera gente, em confuso atribulício. O cego vai-se esgueirando e penetra nas entranhas do edifício. Não há lá ninguém. Seus passos ecoam no corredor. As portas gemem, ao sabor da brisa. Milhares de papéis se borboleteiam pelo chão.

-Inspector Castro!

Andaré chama, sem convicção. Sabe que não haverá resposta. Retarda o passo ao chegar à sala da tortura. Um corpo atrapalha o caminho, à entrada. É Chico Soco-Soco, o cipaio torturador. Tinha sido morto à pancada. Andaré dá graças de ver tão inexactamente. O homem tinha sido estrilhaçado por mil vinganças. O cego entra na sala Kula, o lugar das torturas. Se apercebe das manchas vermelhas na parede. E no chão, estendido, está Lourenço Castro.

O cego fica à porta como se lhe doesse entrar. Parece triste como a água num poço. Uma mão sobre o ombro o assusta. Reconhece o rosto. É um ex-preso que entende ver, em último relance, o lugar onde tanto sofrera.

-Mataram Lourenço?
-Nós matámos o pide preto.
-Então quem matou o branco?
-Cada qual mata a sua raça.

E o preso, sem mais, se extingue no escuro do corredor. O cego fica só, com essa dúvida roendo-lhe a mente. Quem matara Lourenço de Castro? Por momentos, naquele silêncio de tumba, lhe parece reconhecer um perfume familiar. É aroma de mulher. Num instante, as memórias se avalancham. Passam Custódio, Marcelino, Dona Graça, os idos e revindos, cores antigas que agora se convertiam em sons. Das lembranças emerge uma infindável voz que murmura o que ele, no momento, deve executar.

Andaré Tchuvisco vai à arrecadação da prisão, tira uma lata de tinta branca e um velho pincel. E com amplos gestos ele espalha largas demãos sobre a parede. A cada pincelada, a paisagem do quarto se lava. Não há sangue, não há desordem. Não é só o morto que se esvai: a própria morte desvanece. O cego sente que seus olhos se tornam inundáveis. Como se abrisse um imenso pátio onde toda a luz espraiasse. E sente que a prisão, a cada pincelada, se vai dissolvendo, a pontos de total inexistência. Como se o pincel que empunhasse fosse areia, na mão do vento, apagando pegadas no deserto.


In: Vinte e Zinco, pgs 136 a 139.

Incluo também esta fala que inicia o livro e que se refere expressamente ao seu título:

"Vinte e cinco é para vocês que vivem nos bairros de cimento.
Para nós, negros pobres que vivemos na madeira e zinco, o nosso dia está por vir" Fala da adivinhadora Jessumina

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Instituições da União: Parlamento Europeu

Um gorjeio, muitos gorjeios. Uma lufada de ar. Um raio de Sol, aliás, muitos raios de Sol... Tudo isto me entra pela janela aberta. Um sorriso enfeita-me o semblante. A mente leva-me até Pangloss que me diz: tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. Contudo, as falas e a postura dos homens de algumas instituições nem sempre me agradam. Enquanto se me não esfalfa o optimismo, opto por ler. Quais são as funções desse Parlamento Europeu de que se fala, mas nem tanto? 

E partilho consigo esta leitura. 


O Parlamento Europeu é, juntamente com o Conselho da União Europeia, uma das principais instituições da UE com poderes legislativos:

O Parlamento desempenha três funções principais:
  • debate e aprova a legislação da UE (juntamente com o Conselho)
  • exerce um controlo sobre outras instituições da UE, nomeadamente a Comissão, a fim de assegurar que funcionam de forma democrática
  • debate e aprova o orçamento da UE (juntamente com o Conselho)
O Parlamento exerce várias formas de influência sobre as outras instituições europeias, nomeadamente, forçando a Comissão a demitir-se em bloco durante o seu mandato, por meio de uma moção de censura. Também exerce um controlo sobre as actividades da Comissão, examinando os relatórios que esta elabora e interrogando regularmente os Comissários.

Os deputados representam os cidadãos da UE e são directamente eleitos de cinco em cinco anos por sufrágio universal. O número de eurodeputados de cada país é proporcional à sua população.

Os eurodeputados estão agrupados por filiação política e não por nacionalidade.

***

Esta leitura é parcelar, caro leitor. Se quiser ver tudo sobre as instituições europeias clique em União Europeia, no canto superior direito.

No dia 25 do próximo mês de Maio vamos ser chamados às urnas. Grande responsabilidade nos aguarda. As leis aprovadas na União Europeia são transpostas para a legislação nacional, condicionando a nossa vida tanto de forma positiva como negativa.

Mas, entretanto, Saiba quem são os eurodeputados portugueses , em funções.

Quanto ao número, penso que são 22.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Ninguém esperava por mim




Pátria, lugar imaginário onde habitam os estrangeiros. A luz da madrugada, num dia de Outono, pôs diante do olhar a realidade: casas, ruas, os táxis cruzando nas rotundas. Num café, depois, envolve o espírito a consciência do reencontro. O passado e o presente fundem-se no coração e uma alegria infantil invade o corpo do exilado. As cores do país. Vistas da janela do autocarro que corre pelas planícies. O ocre das casas ficou para trás. O ouvido, atento, ávido de palavras (as conversas dos companheiros de viagem). O desejo de falar começa a perturbar a tranquilidade sonolenta do viajante, aquele que depois de longa ausência voltou ao país. O que é um país, além de ser a terra matinal fumegando, além de ser a meta única, o ponto de regresso de todas as fugas? O alarido das ruas da cidade, uma música reconhecida. Não era disso que nos lembrávamos. Voltar aos caminhos antigos traz a emoção inesperada. Ninguém esperava por mim. Sozinho fui devagar, um sorriso inocente brilhava nos meus lábios. Muitas vezes, depois, percorri, entre as colinas, as estradas que levam de cidade a cidade. E por momentos, na divagação dos pensamentos, apareciam os rostos esquecidos, a memória dos mortos, as perguntas. Por que partimos senão para conhecer a ácida alegria do retorno ao país da infância, imaginário? Ninguém esperava por nós, além da mãe que nervosamente ouvia os passos na areia do caminho repetidas vezes, muito tempo antes da nossa chegada. Como a um estranho invade-nos a antiga paisagem da vida. Sentimentos, surpresas. Perplexos, não sabemos que dizer; nem o que sentimos pode ser explicado. Depois adormecemos de cansaço na cama antiga, com um sorriso na boca serena, como se tivéssemos encontrado a paz da morte.


In: 'Nunca mais se apagam as imagens' pg 151, Fenda Edições, Lda.


O título deste excerto é, na verdade, 'Ninguém esperava'. Tomei a liberdade de completá-lo baseando-me numa das suas passagens.



Compõem este livro as seguintes partes: 'Entre Árvores e Casas', 'Cimos Brancos, Cimos Áridos', 'Bilhetes Postais', 'Longe de Casa' e 'Com uma Chávena de Chá na Mão'. 

Retirei o texto acima transcrito de 'Longe de Casa'.

Em nota prévia o autor diz-nos: Dos cinco livros que constituem este volume, o primeiro, Entre Árvores e Casas, foi publicado anteriormente com o título O T de TU (Edições Fenda, Coimbra, 1981); introduzi ligeiras modificações nesta reedição. Os outros quatro livros são inéditos, embora alguns dos poemas que os compõem tenham já sido antes publicados em revistas.

Imagem do autor :
Sons da Escrita em 'Primeiro Programa do Ciclo João Camilo (15 de Fevereiro de 2008)