domingo, 2 de setembro de 2012

pedaços de conversa ...pedaços de vida...


Carreguei o verdinho (sabem? os verdinhos do nosso descontentamento, Lisboa viva, viva viagem) passei-o pelo visor para me abrir a cancela electrónica e encaminhei-me para a escada rolante. Perfilei-me no primeiro degrau e, quase a chegar ao fim das escadas, a correia de um dos meus ténis prendeu-se nos interstícios e então foi uma luta a tentar descalçar-me e não conseguia, e a puxar a puxar lá consegui arrancar daquelas goelas escondidas aquela ridícula correia.

Ainda ofegante, comecei a caminhar pela plataforma tentando não pisar a dita e sentei-me logo no primeiro banco que me apareceu, à espera do comboio. Ao lado estava uma rapariga, ao telemóvel:

-olha, eu ainda não sei, pá...
-...
-tou a pensar ir assim para Sines...
-...
-mas a minha mãe com aquela ideia d irmos po norte...
-...
-bom, pra já o meu namorado não pode ir...

Entrei no comboio, peguei num livro para me entreter enquanto durasse os quarenta minutos de viagem. Procurei concentrar-me na leitura e abstrair-me do que se passava à minha volta. A seguir tinha de apanhar o metro. Procurei na minha mala mais um verdinho, de entre os inumeráveis que já colecciono.  E porquê? É uma longa história... Carreguei-o com o valor correspondente, desci as escadas e sentei-me ao lado de uma mulher de meia idade que mantinha uma conversa convulsiva com alguém do outro lado da linha:

-então, põe-me lá cinco eros no telemóvel...
-...
-agora nã posso, nom tás a ver?
-...
-tenho d ir regar as plantas, dar de comer ao gato...
-...
-é que sobra sempre pra mim...

Chegou o metro e entrei numa carruagem. Por acaso não estava cheio e encontrei logo um assento. À minha frente, um rapaz ao telemóvel:

-pensamos ir ainda hoje, ao fim da tarde...
-...
-sim, vamos a pé, somos um grupo...
-...
-vamos todos os anos a Fátima, se quiseres...
-...
-então, ok, volto a ligar-te, então...

Saí e fui tratar dos meus assuntos, voltando depois a apanhar o comboio para casa, pensando como actualmente as distâncias não existem, andamos com o telemóvel no bolso ou na mala, com o computador ao colo, e tantos outros equipamentos, enfim...Ainda a pensar nisso, reparei que era a minha estação.

Comecei a descer as escadas, esquecendo-me das rolantes, de propósito. Nisso, ouvi uma voz ao meu lado. Era o Carlos, conhecidíssimo de todos na localidade, com o seu andar peculiar, bamboleando-se, atirando os braços, um de cada vez, para longe. Vinha numa grande conversa:

- vocês vão pa praia, hein?...
-...
-ai, pensam que por terem os olhos azuis e cabelos castanhos...
-...
- pensam que podem tudo, né?
-...
-pois eu tenho olhos castanhos e com muuito gosto...
-...
-ora, toma!


Apressei o passo, perdendo o resto da conversa. É assim o Carlos. Quem o não conhece por aqui? Sempre conversando com seres imaginários, ou não, com seres que talvez comuniquem com ele de uma forma por nós desconhecida. Uma vida completamente repleta de vozes que só ele ouve e que, porventura, não serão das mais agradáveis. São discussões que o irritam, problemas pendentes que ele não consegue resolver...

26 comentários:

  1. E o Carlos nem precisa do celular, digo, telemóvel, para se comunicar com os seres invisíveis, não é Olinda? Porque os que estão a falar ao celular, digo, telemóvel, com os que não estamos vendo, também nos são invisíveis, rs

    Mas eu adorei toda a narrativa, desde o cadarço (correia) do tênis que enganchou na escada rolante, até a reflexão final, e confesso que dei muitas risadas, me reconheço nesses incontáveis pequenos acidentes, porque eu sou uma pessoa muito desastrada, e perceber que não sou a única me absolve de uma exclusividade que nem sempre desejo ter, hehe.

    Adorei, querida, vez por outra divirto-me com as conversas que ouço por aqui, nos ônibus que tomo.

    Beijão!

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    1. Sim é, Canto da Boca, há uma relação muito interessante entre estas duas realidades. Na nossa cabeça, as pessoas que contactamos através do celular/telemóvel existem e na cabeça do Carlos (nome fictício) elas também existem. As suas 'conversas' são muito reais e ele as sente com a mesma intensidade que nós.

      Mas olha que o cadarço (não conhecia) pregou-me um susto que nem queiras saber. Já me estava a ver estatelada e com a vida a ser sugada por um fio... :)) E, imagina, eu era a única utente das escadas, no momento.

      Tive vontade de rir, e ri-me, quando, no dia seguinte, ao subir por outras num Centro Comercial vejo dum lado e doutro das mesmas, estes conselhos: 'não se encoste às escadas', 'ate as correias dos seus ténis', 'dê a mão às suas crianças'...
      Nem de propósito, até parece que estavam a falar comigo.

      Beijos

      Olinda

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  2. Olá Olinda,

    Bom apontamento o seu, quase parece que eu ia consigo, ouvindo também estes pequenos trechos de conversas.

    Também acho graça a ir captando o espírito de quem vai deixando fragmentos de vida por onde passa. Palavras soltas, expressões, sorrisos, angústias, desencontros e tudo parece solto, quase sem conserto.

    Gostei muito.

    Um bom domingo, Olinda!

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    1. Olá, UJM

      A vida citadina tem destes contrastes: consegue-se estar só no meio duma multidão, criando-se um certo reduto de observador mesmo sem o querermos.

      Os transportes públicos, em especial o metro, são espaços em que se desenvolvem vários ruídos, especialmente de muitas conversas e essas conversas quase nunca são presenciais.

      A pessoa torna-se praticamente numa ilha e comunica não com as que estão ao seu lado mas com outras que estão longe do alcance visual colectivo.

      Então, estamos de pé com as respirações quase misturadas ou sentados quase ao colo uns dos outros e enquanto ali estamos fazemos parte daquilo.

      Um dia destes sentei-me junto a alguém que...solfejava. Dei uma olhadelha e vi que tinha nas mãos uma partitura que seguia atentamente sem se preocupar com os outros.

      E, como bem diz, são 'Palavras soltas, expressões, sorrisos, angústias, desencontros e tudo parece solto, quase sem conserto'.

      Beijos

      Olinda

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  3. Que pode ter a ver um copo de vinho com... xaile de seda?...
    Ainda pensei, com algum esforço e imaginação, uma deturpação e uma enviesada aproximação do copo com...sede. Mas era 'esticar' demasiado. O certo é que, por desatinos do Google, vim até aqui. E, 'já agora', do 'verdinho' passei por mais aqui e ali. Gostei. E, daí, parabéns. E vou, a ver se descubro a origem de um tal copo de vinho...

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    1. Olá, Jorge Esteves

      Boa pergunta! e respondo dizendo que aqui o xaile não enjeita um 'verdinho', isto é, o bom, o autêntico, o verdadeiro...E outros 'sumos' das maravilhosas castas de uvas que há por este país fora. Seguir estas rotas, será como que redescobrir a tradição e a nossa própria História.

      Agradeço ao google os seus 'desatinos', que o conduziram até aqui.

      O seu fino comentário trouxe-me a imagem de uma roda de amigos, em franca cavaqueira, frente ao 'tal copo de vinho'...

      :)

      Abraço

      Olinda

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  4. Achei muito interessante a reflexão feita pela "Canto da Boca". Até certo ponto (ou quase em todos os pontos), os seres invisíveis, mas que para nós são absolutamente reais, com que falamos pelo celular, digo telemóvel [ :-)] estão na razão directa dos seres invisíveis, mas para o Carlos tão reais, com quem fala, do mesmo modo que nós com os nossos interlocutores celuláricos, digo telemóvicos. Só que, de uma forma incomparávelmente mais económica.

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    1. Não sei, não, Bartolomeu, se é mais económica, se considerarmos isto em 'latu sensu'.

      Vejamos:

      Carlos é uma pessoa concreta, ele existe, só que aqui sob um nome fictício. Ele gasta muita energia quando tenta dirimir as suas questões, de vária ordem, com os seres que o acompanham.

      Digamos que ele gasta os seus dias e as suas noites nesta tentativa e sem resultados à vista. É como a tarefa infindável de Sísifo, subindo com o rochedo até ao alto da montanha;o rochedo rola por aí abaixo e então ele inicia tudo de novo. Uma espécie de maldição.

      Além disso, há o sofrimento da própria alma, da frustração, de dias sem amanhã, talvez incompreensíveis para ele, mas sentimentos que lá estão, fazendo o seu trabalho de desgaste...

      Contabilizando o que não é nem será contabilizável, penso que a balança penderia negativamente para o lado de Carlos.

      Abraço

      Olinda

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  5. Olinda
    Também me perco com os pedaços de vida que apanho aqui e ali, no autocarro, no comboio. Não é por bisbilhotice, é que acho os seres humanos mesmo fascinantes...
    Bjs

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    1. Olá, Teresa

      Sei como é.E ali estamos tomando contacto com tantos e tão variados momentos de pessoas que não conhecemos mas que, por instantes, fazem parte das nossas vidas.

      Bjs

      Olinda

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  6. Parece mentira como as pessoas hoje trazem as suas vidas todas para a rua os transportes ou até no café...
    As conversas de telemóvel denunciam as suas amizades, viagens projectos e necessidades...
    No final ainda pressupõe que o Carlos fala sozinho, com seres por ele imaginados...
    Vicio...dependência... ???

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    1. Caro Luís

      Realmente, há também este aspecto a considerar; o pouco caso que as pessoas fazem da salvaguarda dos seus assuntos.

      A forma como se fala, vozes muito altas, vários telemóveis a funcionar ao mesmo tempo, faz-nos pensar que agora se vive tudo publicamente, sem cuidarmos de resguardar um pouco a nossa privacidade.

      Para Carlos, infelizmente, a pendência que ele tem com seres que nós não vemos, vai para além das suas próprias capacidades de opção. E então surge a eterna questão: somos nós que estamos certos na nossa lucidez ou será isto uma ilusão?

      Abraço

      Olinda

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  7. Acho que estou como o Carlos ;)
    Beijinhos, boa semana!

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    1. Olá, Gata

      Acho que todos nós, às vezes, temos um pouco disso.

      Talvez uma forma de nos rebelarmos contra regras e mais regras
      a que estamos sujeitos. Só que não pode ser por muito tempo...senão abalamos as estruturas. :)

      Bjs

      Olinda

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  8. Não me parece que faça uma figura muito diferente daquela de quem utiliza o telemóvel...

    Beijinhos, amiga minha.

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    1. Em ambos os casos o sujeito ou sujeitos para quem se fala, não está à vista. A diferença estará no mundo que visualizamos através das nossas palavras.

      Uma boa semana, querida São.

      Bjs

      Olinda

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  9. Obrigada pela sua simpática visita :)
    Escreve muito bem, já publicou alguma coisa? É que sou uma "devoradora de livros"...sempre interessada na magia das palavras e em quem as sabe trabalhar :)
    beijinho

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    1. Oh, Célia, que lindo!

      Agora sensibilizou-me com estas suas palavras, sabe?

      Mas não, só escrevo umas palavras aqui e ali na busca de conversas como esta, em que a troca de ideias é muito gratificante.

      Eu também adoro ler. Ando sempre a espreitar escaparates à procura do livro ideal. :)

      Bjs

      olinda

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  10. OI OLINDA!
    É ENGRAÇADO, PIOR AINDA QUANDO A PESSOA ESTÁ COM O FONE DE OUVIDOS, COMO AQUI NO BRASIL É INVERNO AGORA, OS FONES SE ESCONDEM NAS GOLAS OU MANTAS E MUITAS VEZES NÃO SABES SE É COMO TEU CONHECIDO CARLOS FALANDO COM PESSOAS IMAGINÁRIAS OU SE SÃO OS FONES ESCONDIDOS.
    GOSTEI DE LER.
    ABRÇS.

    zilanicelia.blogspot.com.br

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    1. Zilani

      É mesmo! Dantes havia as pessoas que falavam sozinhas e punha-se logo em dúvida as suas capacidades mentais. Agora podemos falar à vontade porque já temos uma desculpa. :)

      Bjs

      Olinda

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  11. Bem, as pessoas gostam de estar sempre contactáveis. Um erro tão grande!
    Mas a vida social é importante como tudo o que resta...

    (gostei de ler a minha cidade ai no meio, eheh, interessante)

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    1. Claro, Paulo, isto é uma grande verdade e uma necessidade.

      Presentemente já nem se pode dizer 'agora não posso falar, porque estou no metro e isto não tem rede'.

      A velocidade a que as coisas acontecem hoje em dia, o não estarmos contactáveis poderá significar perda de uma oportunidade de trabalho, notícias sobre familiares nossos,amigos, viagens, e tantas outras situações.

      Isto quer dizer que tudo tem o seu lado bom e não há dúvida que prescindirmos do telemóvel nos dias que correm não entra na cabeça de ninguém. É uma coisa que já faz parte de nós. Digo,francamente,sinto-me completamente desconfortável quando não o trago comigo.

      Abraço

      Olinda

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  12. A narrativa é de uma exposição de valor para os atuais padrões contemporâneo, digo que aqui em nosso país tem o povo tem mania de se exibir com seus celulares, sempre falam alto e gesticulam só para se mostrar. Digo isso aqui na minha terra Brasil,Bahia,Salvador.
    Eu tenho a mania de estar conectado ao móvel sempre com os fonas e falo baixo pois não gosto de exposições em demasia. É o que a vida moderna requer hoje em dia.
    Abraço

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    1. Olá, Lu Cidreira

      Os telemóveis/celulares hoje em dia são ferramentas tão indispensáveis ao nosso dia-a-dia que seria realmente impensável vermo-nos privados deles.

      A sua utilização requer, deveras, uma certa parcimónia, particularmente quando estamos em espaços públicos. Assim, beneficiamos todos de uma das maiores invenções desta era, de fácil transporte e de grande utilidade.

      Obrigada pelo seu contributo.

      Ãbraço

      Olinda

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  13. Bem poderias titular: A vida aos pedaços.
    Afinal, não é apenas numa viagem , num dia, que se encontram estes diálogos. de tão repetitivos e iguais quase nem nos apercebemos deles.
    Caso, sim. É a prisão do cardaço!...


    Beijos


    SOL

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    1. Ai, Sol, Sol, não sei. Acho que a 'vida aos pedaços' não iria ao encontro daquilo que eu tinha em mente. Mas daí, nunca se sabe...

      A repetição de situações leva a que realmente se comece a não ouvir, passando a poluição sonora. Mas a vida tem coisas engraçadas. Por vezes, contra todas a probabilidades as coisas acontecem, o que poderia parecer impossível passa a ser completamente verosímil.

      A prisão do cardaço! Isto parece tão real que até tive um baque, visto assim desta forma, inquietante mesmo.

      :)

      Um abraço, Sol da Esteva.

      Olinda

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